sexta-feira, 9 de junho de 2017

Como vão as coisas, menino?

Eu me chamo Carlos, trabalho em um escritório de publicidade. Sou designer. Vim morar aqui no Rio de Janeiro depois que me formei na Bahia. Sou pernambucano. Muitos aqui me chamam Baiano. Eu ainda não sei se porque estudei lá ou se porque eles acham que depois que passou Minas Gerais é tudo Bahia. Ou se são um pouco burros pra perceber que isso é um pouco preconceituoso.

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Que delícia acabar todo o trabalho e poder chegar em casa mais cedo. E voltar andando, cara, melhor ainda. Ainda dá tempo de pegar o Jardim Botânico aberto. Não. Talvez eu possa dar uma volta pela Lagoa, tomar uma água de coco, comer um churros. É isso, vou andando, ouvindo uma musiquinha, o disco de Gal... Que saudade de casa. Quando chegar em casa vou ligar pra mainha. Não falo com ela há dias.

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Faz tanto tempo que eu moro aqui. Uma pena que não consiga frequentar tanto esses lados da cidade. A Lagoa fica linda no fim da tarde. Um cigarro e uma música são a combinação perfeita pra essa vista. Deveria fazer isso mais vezes.

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Perco tempo procurando nas músicas mais novas algo que me fale das coisas da vida, do dia-a-dia. Sei lá, já faz muito tempo que nenhum desses compositores fala nas músicas das coisas cotidianas, do que acontece na vida da gente. Às vezes a gente só quer ouvir alguém dizendo que tem uma vida igual à nossa. É pedir demais? Aí eu perco meu tempo em casa, escrevendo besteiras no caderno. Contando casos desde o Baixo Gávea até o Baixo Botafogo. Isso poderia virar um livro. Será que alguém leria? Não ia passar de mais um. Quem leria uma besteira dessa, Carlos? Tá na hora de voltar...

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Nota mental: me lembrar de passar na mercearia de seu Joaquim... Engraçado que, toda vez que passo por aqui ele me pergunta como vão as coisas. “Como vão as coisas, menino?” Parece minha vó falando. Ele é um porto seguro pra mim. Também nordestino, mas veio aqui pro Rio muito jovem pra trabalhar com o pai. Abriram essa mercearia, que até hoje é dele. Dá pra comprar farinha boa e umas coisas de Nordeste que eu nunca encontraria aqui em Botafogo. “Como vão as coisas?” Demorei de responder, dessa vez.

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Fiquei um tempo calado apenas olhando para as broas de milho, que eram deliciosas. “Meu namorado voltou pra Bahia, seu Joaquim. Ficou quase louco e arranjou um emprego. Tá trabalhando em um jornal de lá. Meu melhor amigo, que mora lá em casa também, foi atropelado. Caso comum de trânsito. Tava voltando pra casa.” A cara dele não era das melhores. Eu percebia que ele nem sequer sabia o que falar. Mas era isso...

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“Vim andando da Lagoa até aqui.” “É longe, menino!” “Eu sei, vim pensando na vida, descarregando os meus dias, a semana, o peso de todas as coisas.” “Pensando no livro, né? Já disse que aceito te dar entrevista para esse tal livro do Botafogo.” “Seu Joaquim, o livro não é sobre o time, é sobre as pessoas do bairro. Eu não acho que as pessoas achariam interessante esse monte de besteira que eu penso.” “Deixa as pessoas decidirem, menino.” Às vezes não tem lugar pros meninos, pensei.

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Uma broa de milho. Um café. Outra broa. Um cigarro. Olhar distante. Saudade de casa. A Bahia está longe. “Eu estou longe, seu Joaquim.”

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“Oh, menino, cadê aquele poeta moreno e latino que escreveu o amor? Hein, cadê?” “Ninguém sabe dele.” “Viajou, foi?” “Não... Desapareceu.” Silêncio. Silêncio. Silêncios.

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Despedi-me, acendi mais um cigarro, minhas broas num saco. A farinha em outro. A carne de sol em outro. Voltei andando para casa. Não pra minha casa, mas pra casa que estava sendo minha. Volta, menino.

*Texto inspirado livremente na música Caso Comum de Trânsito, de Belchior