as lágrimas mancharam mais de uma vez o papel em que ela escrevia a carta de despedida. ele cantarolava uma canção antiga, ainda do início do relacionamento. ela tentava desesperadamente escrever algo que não a fizesse morrer aos poucos. ele acendeu um cigarro, encostado na janela, olhava para baixo. ela descansava os olhos marejados na parede branca do quarto de dormir. ele respirava fundo da janela do vigésimo terceiro andar. ela lembrava de todas as palavras ditas, carinhosas, rudes, amáveis, afiadas. ele ainda cantarolava a canção. ela voltou a escrever e seu rosto não secava. ele encostou a cabeça na parede. ela deitou um pouco, olhou para cima e imaginou estrelas. ele sentou no chão, enquanto olhava fixamente o cigarro, como desejasse apagá-lo com a mente. ela deixou escorrer pelo rosto as lágrimas; não limpou. ele colocou a cabeça entre os joelhos, rezou uma ave maria. ela sentou e tomou a caneta novamente às mãos. ele abriu a boca em um lamento surdo. ela soluçou cinco gotas de lágrimas. ele tragou. ela suspirou. ele parou de cantarolar. ela secou as lágrimas em seu rosto. ele terminou o cigarro, finalmente. ela terminou a carta, finalmente.
não sei quanto tempo demorei para sair dali. saí daquela sala enquanto o nilo me banhava a face. olhei para seu rosto também úmido, suas mãos ainda trêmulas. não sabia onde chegaria, nem para onde ia, nem como seria o futuro distante planejado naquele último minuto. saí cantarolando uma música qualquer cheia de dor. queria sentir como era ser machucado. a autoflagelação, a mais cristã das minhas atitudes. era o que me restava naquele meio de tarde de outono. saí sem acender nenhum cigarro. a carta estava em cima da mesa. a chave de casa estava sobre o sofá. abri a porta. fechei a porta. beijei o papel. beijei também seu rosto. sequei o pouco resto de lágrima que ainda tinha. levantei os olhos para o teto. imaginei estrelas. acendi o cigarro. abri a porta. parti em um adeus que nem eu mesmo pude escutar.
ela acordou.
ele acordou.
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